17.4.2023

Bolhas polarizadas

As bolhas não surgem espontaneamente, elas nascem pelo anseio de aglutinação de ideias compartilhadas, de princípios e valores, distorcidos ou não, e que fazem sentido para certos grupos, contemplados em suas angústias e anseios

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Paola Barros Delben
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Todos conseguem entender tranquilamente o conceito de uma bolha social. As bolhas existem e fazemos parte de alguma, eventual ou permanentemente. Alguns têm a habilidade de transitar entre as bolhas, já outros preferem destruir bolhas e há quem crie bolhas e “sub-bolhas”. Escolhemos esta ou aquela, seja por obrigação, preguiça, comodidade, sensação de falta de opção, sentimento de pertença e de segurança, dentre outros motivos. Temos a noção de dependência financeira daquele ambiente, mesmo que seja tóxico para nós e para os outros.

O desligamento físico e emocional não é simples, mas um processo também de evolução e progresso individual e da sociedade em que estamos inseridos. Por exemplo, de um lado os que não acreditam nas mudanças climáticas, de outro, aqueles que pensam já ser tarde demais para mudarmos algo, mas há um lado (terceiro ou quarto) com aqueles que lutam até o fim para mudar e fazer os demais entenderem as mudanças necessárias e aqueles que nem mesmo se importam.

Em 1985 foi lançada a obra “O Conto da Aia” (The handmaid’s tale), de autoria de Margareth Atwood. O livro virou filme e depois série de TV de sucesso, ganhou prêmios e continua polêmico e aterrorizante mesmo nos dias de hoje, pois trata-se de um cenário possível.

Sem spoilers, o conto é uma distopia que incomoda pelo fato de não ser tão distante assim da realidade, aliás, inspirada em fragmentos da história e por isso, talvez, facilmente reconhecida, permitindo a identificação com a obra, espanto para uns, compatibilidade para outros, por mais estranho que possa parecer se você fizer parte de uma “bolha” que se afasta de tudo o que restringe os direitos humanos, sejam esses humanos mulheres, LGBTQI+, negros e outras minorias perseguidas.

Quando nos deparamos com crises sanitárias como a da Covid-19, ou com a possibilidade de um golpe à democracia, ou uma mudança ambiental irreversível, nos damos conta dos limites de cada "bolha" de maneira tangível. Tal qual essa alegoria, no romance fictício bolhas surgiram com ideias ultra extremistas políticas e religiosas polarizada em que pessoas se sentiam confortáveis para discorrer sobre planos de um Estado ideal – para eles uma utopia.

As bolhas não foram interrompidas, ninguém tentou argumentar de maneira contundente, até mesmo deixaram acontecer, menosprezando o poder daquelas pessoas, embora fundindo cada vez mais simpatizantes e crescendo, até que aquela se tornou a bolha predominante, que absorveu as bolhas contrárias forçadamente e ficou fácil destruir as demais bolhas que não se sujeitassem, até que se calassem de vez - exceto a resistência (Sempre haverá uma resistência).

Todos nós estamos em bolhas, às vezes em mais de uma, e às vezes nos iludimos acreditando que o que é dito naquela bolha é a única verdade, que é inadmissível alguém pensar ou agir diferente de determinada perspectiva, como uma “lei universal”, a exemplo do direito a viver e ter condições mínimas de dignidade que foi privado dos Yanomamis (curiosamente, o nome desse povo significa “seres humanos”). Alguém poderia defender o contrário? Sim, poderia e os argumentos são os mais diversos, bem fundamentados, mesmo que não concordemos – não devemos tolerar tudo, vide o paradoxo da tolerância.

Queimar florestas, reduzir ou anular investimentos em meios sustentáveis ou fazer piada de quem morre por conta de um vírus, ou em decorrência do desmatamento e envenenamento das terras, não deveria ser aceitável. Ao menos em certas bolhas prevalece esse consenso e, de modo geral também. Porém, alguns desses elementos podem ser ignorados, ou até mesmo colocados num patamar de prioridade quando a percepção do todo se sobressai.

As bolhas não surgem espontaneamente, elas nascem pelo anseio de aglutinação de ideias compartilhadas, de princípios e valores, distorcidos ou não, e que, por mais absurdas que pareçam, fazem sentido para certos grupos, ganham forma e crescem alimentadas por pessoas que se sentem confortáveis ali e, contemplados em suas angústias e anseios. Em dado momento, aquela ideia de que tínhamos vergonha de enunciar em alto e bom som, de que a Terra é plana, por exemplo, é endossada por outros, às vezes por multidões e até pela maioria, reduzindo o constrangimento e dando força para vozes que se encontram em coro.

Podemos concluir que não é errado escolher viver em uma só bolha, evitando conflitos com outras bolhas num extremo oposto ou mesmo sutilmente distintas. O errado mesmo é quando enxergamos contradições ou aspectos imorais, científicos ou de ordem sendo ultrajados pelos participantes de certas bolhas e não fazemos nada para impedir, sequer nos esforçamos para dialogar com quem está naquela concentração de mentes semelhantes, que pode sim ser resgatado (a) elevado (a) para outro lugar.

As bolhas crescem. Bolhas de direita e esquerda, por exemplo, num cenário polarizado do mundo.

Cada um segue uma lógica que do ponto de vista macro são igualmente importantes e até fundamentais para a sobrevivência da espécie, de acordo com cada situação. Dentro de cada bolha há quem advogue que as mudanças climáticas não são verdadeiras ou “só” vão afetar nossos filhos e netos, um dia, talvez. Como naquele meme do senhor de idade plantando tâmaras – que levam décadas para então serem colhidas – criticado por um jovem que não entende a razão de tanto esforço, se o senhor jamais conseguirá ver o fruto de seu trabalho.

Não precisamos concordar com tudo o que é dito dentro de uma bolha, se estamos nos sentindo pertencentes a um grupo que prega pela família tradicional e esse mesmo grupo incita o ódio e a violência, mesmo que esse último não esteja de acordo com nossos preceitos, vamos tolerar e defender o grupo para fazer valer aquela identidade? Teria que uma grande geleira derreter, ou um meteoro cair para que a urgência se anunciasse, ou nem mesmo isso, como ironizado na obra cinematográfica “não olhe para cima”?

Desconsiderando os outliers, extremistas, ou os de centro, a população geral se direciona mais para um lado ou outro, direita ou esquerda. A oposição, muitas vezes erroneamente interpretada, é aquele "lado" que se encontra literalmente oposto ao vigente no poder, quem se coloca contrário a determinado norte e esse movimento pode transferiras pessoas de um lado para o outro, sem que as bolhas sejam furadas.

A tendência natural, numa análise independente de fatores econômicos e sociais, é que as pessoas simpatizem mais com a esquerda ou com a direita guiadas por alguns fatores, como noção de compaixão, de justiça e merecimento e de pertencimento e identidade, que pode, essa última, levar a uma polarização para rejeitar grupos diferentes.

E o que a política tem a ver com bolhas sociais e aspectos ambientais? Absolutamente tudo.

Em geral, pessoas de esquerda são mais receptivas à diversidade, equidade e inclusão, que formam a sigla EDI, e as de direita inclinadas para a noção de virtude e pureza conservadora, mais preocupados com a identidade do grupo, com o “nós” que com os “outros”. Um está mais certo que o outro? De maneira alguma, até esse ponto estamos olhando para características constituintes positivas que prezam pela sobrevivência e são muito importantes.

Simpatizantes de direita podem e normalmente convivem com os demais, mas se sentem mais confortáveis compartilhando com seus semelhantes física e mentalmente, reduzindo as possibilidades de integração e se projetam para viver em paralelo rumo a manter a ordem e a harmonia da sociedade.

Já os simpatizantes de esquerda são direcionados pelo hedonismo, pelo imediato, e tendem a romper com as tradições, têm a compaixão como pilar – embora os direitistas também trabalhem o conceito de compaixão, mais restrito ao próprio grupo e com a meritocracia acentuada em sua busca por justiça.

Por essa análise bastante simplificada, poderíamos pensar de forma reducionista que simpatizantes de direita são mais propensos a conservar, manter e proteger o meio ambiente, enquanto simpatizantes de esquerda se direcionam a um comportamento mais impulsivo, consumista e sem preocupação com futuro, pelo caráter hedonista marcante, entretanto, o fator humano é complexo e influenciado por inúmeros elementos, alguns visíveis e outros mais submersos.

Os seres humanos são como icebergs e só a ponta fica realmente na superfície. O pilar da compaixão pode levar a uma inversão de valores de imediato e causar um efeito cascata, além da identidade do grupo ser proeminente quando surgem ameaças à existência.

O famoso teste do cachorrinho ilustra bem as diferenças entre grupos. Enquanto a direita prefere o mais leal e hostil aos diferentes, a esquerda opta pelo mais brincalhão e que não oferece benefícios diretos de proteção – exceto a emocional. Essas diferenças são neurofisiológicas, pois em estudos com imageamento cerebral observa-se a amígdala de pessoas de direita bem mais desenvolvida, em comparação com pessoas de esquerda, que por consequência têm menos medo e reações intensas aos perigos.

Pode-se entender que o medo é uma emoção moduladora das simpatias políticas de certo prisma. Porém, simpatias políticas denotam intenções, enquanto votos exprimem comportamentos, ações influenciadas por repertórios individuais e coletivos muito mais conectadas com aspectos racionais que emocionais. Até mesmo simpatizantes de direita podem preferir candidatos de esquerda em momentos que isso signifique a sobrevivência do grupo, ou expressam a demanda por autoridade, ordem e virtude quando não é a cooperação e a convivência que vai pautar essa sobrevivência.

Quando deixamos de enxergar os opositores como inimigos ou vilões, mas componentes de bolhas que podemos, inclusive, um dia coabitar, ou que podem ser importantes para momentos específicos, seguimos um fluxo distinto em que há uma lógica inerente exigindo a comunicação – excluindo-se os extremistas que não permitem diálogos ou argumentos por mais válidos que pareçam.

A questão principal dessa reflexão é: “falar com as bolhas”. Se tomarmos como exemplo as eleições recentes para presidentes de países, podemos compreender o conceito que precisa de ruptura para que então as ideias possam de fato serem discutidas civilizadamente.

Não adianta seguirmos argumentando com aqueles que fazem parte da nossa bolha sobre questões que já são aceitas por eles, é como vender um produto que já foi comprado pelo cliente, um desperdício de tempo, vamos apenas “validar” nossas ideias e opiniões, sem qualquer possibilidade de ampliação das noções de certo e errado e direcionamentos assertivos ou estratégicos.

Precisamos alcançar os que fazem parte das bolhas que ficam no polo oposto, pois esses também falam entre si. Falar com as pessoas de outras bolhas não é fácil e quem advoga pela saúde mental pode ser contrário a insistir sair da chamada “zona de conforto”, como se fosse uma perda de tempo tentar convencer os outros que suas ideias não são provavelmente as mais adequadas, ou moralmente aceitas.

Furar a bolha requer habilidade para que as bolhas se fundam e não estourem – exceto bolhas notoriamente prejudiciais, como a de preconceituosos. Quando mudanças concretas são observadas, ainda que a polarização permaneça preocupante, temos uma chance de dialogar, de romper as bolhas e lembrar que, no fim das contas, vivemos todos numa imensa bolha, um pontinho azul insignificante numa vastidão cósmica.

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Paola Barros Delben
Paola Barros Delben
Psicóloga, professora, escritora, pesquisadora polar e cofundadora da startup Polar Sapiens.
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Paola Barros Delben
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