26.2.2024

Base de Alcântara e o racismo ambiental

Litígio traz precedentes para punir governos por crimes de racismo pela Convenção 169 que assegura a autonomia de povos indígenas e tribais

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Tatiane Matheus
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Uma mulher negra com vestes azuis abaixada no meio de um campo verde
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Annie Spratt/ Unsplash
Comunidades da região do Maranhão foram privadas de condições adequadas de vida pelos reassentamentos

A tese do jurista e ministro Silvio de Almeida é que o racismo é sempre estrutural. A desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por causa da ação isolada de grupos ou indivíduos racistas. Mas, pelas instituições hegemonizadas institucionais para impor seus interesses políticos e econômicos.

Um exemplo prático dessa tese foi a expulsão de quilombolas de suas terras durante a ditadura militar, nos anos 1970. A Força Aérea Brasileira desapropriou 312 famílias para o projeto do Centro de Lançamento de Alcântara (MA).  Entre 1986 e 1988, comunidades da região sofreram uma alteração de costumes e foram privadas de condições adequadas de vida pelos reassentamentos.  

Além de todo o acúmulo de desigualdades da ação, o local é também exemplo de como algumas áreas povoadas por determinados grupos étnicos sofrem com o racismo ambiental. A ex-embaixadora do Brasil, arquiteta e pesquisadora Dulce Pereira, em artigo publicado no Congresso em Foco, ainda informa sobre violações cometidas contra mulheres, desde toda sorte de constrangimentos a violência sexual.

No ano passado, houve uma audiência do Estado brasileiro, como réu, na Corte Interamericana de Direitos Humanos com base na Convenção Americana de Direitos Humanos e na Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). 

Para o jurista, pesquisador e mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Maranhão, o quilombola da comunidade de Canelatiua, em Alcântara (MA), Danilo Serejo, o Brasil não possui nenhuma experiência concreta na efetivação do que preconiza a C169. 

Serejo também coordenou o processo de elaboração do protocolo comunitário sobre consulta e consentimento prévio das comunidades quilombolas de Alcântara e é autor do livro "A Convenção nº 169 da OIT e a questão quilombola: elementos para debate", publicado pela Justiça Global — o qual recomendo a leitura para entender não apenas a questão, como também o modus operandi de muitos empreendimentos de mineração e de energia atuais — que cometem ações de racismo ambiental no desenvolvimento e execução de seus projetos.

De acordo com Serejo, o Estado tem feito algumas movimentações — como se empenhar em pagar antecipadamente o fundo de reparações — para tentar se antecipar e esvaziar o conteúdo da sentença da Corte, pressupondo que ele será condenado. "Na prática significa um grande problema, porque ainda não existe sentença. Portanto, não se sabe nada sobre se os nossos pedidos serão aceitos total ou parcialmente”, explica Serejo.  

Direitos e deveres  

Segundo a C169, quem faz a consulta livre, prévia e informada é sempre o Estado, e não o empreendimento. O artigo 15 obriga o Estado a adotar, em conjunto com os povos interessados, salvaguardas especiais para proteger os direitos e interesses desses povos e comunidades. Inclusive, o direito de participar da utilização, administração e conservação desses recursos.

Medidas especiais devem ser construídas para determinar se os interesses desses povos serão prejudicados. A solução para isso reside no cumprimento e no respeito do direito de consulta prévia, livre e informada pelo Estado em todas as suas fases e procedimentos. Para Serejo, se o Brasil cumprisse exatamente o que manda a C 169 problemas como esses seriam evitados.

Porém, na prática, a consulta tem sido operacionalizada pelos grandes empreendimentos e pelo Estado como uma espécie de funil em que se passam todas as cartas de Direitos Humanos dos povos e comunidades tradicionais, ficando apenas o debate sobre as mitigações e as indenizações — segundo a advogada colombiana Diana Riaño. 

Serejo explica que a consulta é justamente a oportunidade oferecida para que se possa discutir com boa-fé e franqueza a proposta em questão para que os povos possam determinar suas prioridades e seus interesses. Enquanto isso não for efetivamente considerado, haverá violações da C169.

Os povos e comunidades não podem vetar um projeto. Mas, Serejo defende no livro "A Atemporalidade do Colonialismo:contribuições para compreender a luta das comunidades quilombolas de Alcântara e a Base Espacial" que o acordo entre comunidade e Estado deveria ter uma cláusula de arrependimento se a comunidade perceber que os impactos do empreendimento estão causando danos à vida. Já que o sentido ontológico da C169 é proteger o modo de vida da comunidade.

Historicamente, a sociedade brasileira excluiu povos e comunidades tradicionais dos espaços de decisão e do processo de concepção das políticas e projetos de desenvolvimento que lhes são concernentes. Porém, isso não os impediu de sofrer com os impactos.

Voltando à tese de Silvio de Almeida, os conflitos raciais também fazem parte das instituições. Será que se a população de Alcântara tivesse o mesmo perfil econômico e étnico dos moradores do bairro Jardim Europa de São Paulo ou de Copacabana, no Rio de Janeiro, o projeto e os reassentamentos teriam sido feitos dessa mesma forma?

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Tatiane Matheus
Tatiane Matheus
Jornalista e pesquisadora sobre Justiça Climática e Racismo Ambiental.
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Tatiane Matheus
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