11.3.2024

Gestores não veem a biodiversidade como a dádiva que ela é, diz bióloga conhecida como "mãe" das araras-azuis

Neiva Guedes fala sobre a importância da arara-azul, as dificuldades em se fiscalizar o meio ambiente brasileiro e o peso de ser conservacionista

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Sabrina Brito
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Acervo pessoal/ divulgação
A pesquisadora Neiva Guedes segura um filhote de arara-azul com 44 dias de vida enquanto equipe remaneja um ninho artificial

Bióloga e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional da Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal (Uniderp), Neiva Guedes dedica sua vida à conservação das araras-azuis. Desde o ano de 1990, coordena o Projeto Arara-Azul, onde desenvolve estudos sobre a biologia e monitoramento da espécie Anodorhynchus hyacinthinus, a arara-azul, hoje considerada vulnerável à extinção. 

O seu empenho à proteção desse animal fez com que ela ficasse conhecida como "a mãe da arara-azul", e os seus esforços fizeram com que a ave saísse da lista de animais em extinção. Em 2022, recebeu o Colar do Mérito Pantaneiro por suas contribuições relevantes ao Mato Grosso do Sul e à região do Pantanal. Ainda, integra o hall da fama da ONU Mulheres, braço das Nações Unidas que promove a igualdade de gênero.

Leia, a seguir, a entrevista completa com Neiva Guedes.

O que fez com que a senhora se tornasse atraída pelas araras-azuis? Desde a infância, gosto de natureza. Cresci em uma cidade do interior, com muitas aves. Quando criança, queria fazer medicina. Porém, 40 dias antes do vestibular, perdi meu pai. Ficamos em uma situação financeira em que eu precisei começar a ajudar minha família. Não podia mais me dedicar apenas aos estudos. Não passei em medicina, o que me deixou muito frustrada. Decidi fazer biologia, e, durante o curso, me encantei. Escolhi ser pesquisadora, e aprendi muito. Percebi que queria trabalhar com animais, e fiz um curso de conservação da natureza cuja última fase era no Pantanal. Lá, nos deparamos com um grupo de araras-azuis, e o professor disse que elas estavam fadadas a desaparecer da natureza. Ali, me senti atraída. Sempre digo que foi amor à primeira vista. São aves encantadoras. Foi aí que comecei minha saga para entender e estudar as araras-azuis.

Qual a importância da conservação e proteção dessas araras? Essas aves são consideradas emblemáticas para a conservação, pois encantam. As pessoas costumam gostar delas, porque elas são carismáticas. Elas são importantes para a conservação, e as usamos para sensibilizar as pessoas para com outras espécies que convivem com elas. As araras-azuis são verdadeiras engenheiras ambientais, pois usam seus bicos para escavar ninhos nas árvores, o que serve de abrigo e espaço de reprodução ou alimentação para outras espécies de aves ou até de mamíferos. Elas também têm o papel de disseminar diversas sementes por até mais de um quilômetro, papel que normalmente é reservado aos grandes mamíferos. Trata-se de uma jardineira de floresta.

Quais habilidades a senhora teve de aprender para poder estudá-las? Tive que começar do zero. Não sabia nada sobre as araras. Aprendi, ao longo dos últimos 35 anos, a andar pelo Pantanal (onde as referências não são ruas, mas troncos caídos, rios, entre outros) sem GPS, a escalar árvores para acessar ninhos, a gerenciar pessoas, a dirigir carros, a desatolar carros, entre muitas outras habilidades.

Quais as maiores dificuldades de se trabalhar com conservação de fauna no Brasil? Quando comecei, em 1990, existiam pouquíssimos trabalhos com fauna no Brasil. Eram pesquisas mais isoladas, com poucas referências. Desde aquela época, fauna e meio ambiente não são assuntos muito considerados em termos de políticas públicas. A nossa biodiversidade ainda não é valorizada, conhecida, estudada. A ciência e a pesquisa melhoraram, mas ainda falta muito para entenderem tudo que nós temos.

Os gestores não veem o assunto como a dádiva que a nossa biodiversidade é. Em alguns assuntos, estamos retrocedendo, e algumas espécies estão sendo tiradas do Brasil. A legislação, que pode ser muito boa, não é aplicada. Esse é um grande desafio. Os processos entre o papel e a realidade são muito lentos. O Brasil tem uma extensão quase continental, e o número de pessoas que trabalham com cuidado e fiscalização ainda é muito pequeno. Além disso, as pessoas precisam entender que, se quiserem um meio ambiente sadio, precisam ajudar a cuidar da natureza. Estamos sentindo agora os efeitos da perda de biodiversidade, mas ainda falta caminhar muito.

Qual a importância da catalogação de espécies? Sem ela, seria impossível a comunicação entre cientistas de diferentes países sobre essas espécies. Se eu falo de uma espécie pelo nome científico, todos saberão de quem estou falando. Sem isso, seria uma bagunça. Não conseguiríamos nos entender.

O que levou à drástica diminuição no número de araras-azuis pelo mundo? Na década de 1980, a arara-azul entrou para a lista de animais ameaçados de extinção por alguns motivos. O primeiro deles foi o tráfico com o fim de servirem de animais de estimação. O segundo foi a destruição de seu habitat, com o desmatamento e as queimadas. Também houve a busca de penas por indígenas, para colocar em cocares e colares, por exemplo. Até hoje, existe o tráfico de ovos não só da arara-azul, mas de outras araras e de tucanos. Já com a mudança climática, ninhos são alagados, perdendo-se ovos ou filhotes. Os incêndios recentes, de 2020 e 2021, também queimaram ninhos naturais e artificiais, intensificando ainda mais a situação.

Qual o preço de ser conservacionista no Brasil atual? O preço eu estou sentindo agora. Dediquei os últimos 35 anos à conservação da arara-azul, mas, por mais que lute e faça, ainda estamos muito longe de obter resultados em relação à sobrevivência da espécie. É desesperador, um pouco triste. Conseguimos resultados; aí, vem um incêndio ou traficantes e temos que começar do zero. É como se nunca tivéssemos feito nada. Existe, por outro lado, um crescente entendimento da sociedade em relação à importância do assunto. Acredito que os jovens podem ser melhores e conseguir efeitos mais positivos. Precisamos de mais recursos e incentivos para propagar isso cada vez mais.

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Sabrina Brito
Sabrina Brito
Jornalista formada pela ECA-USP e graduanda em Direito pela PUC-SP
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